Você já teve que
extrair o siso? Eu não, graças a uma intervenção divina. Um amigo me disse que
posso relaxar, porque após os 20 é pouco provável que ele nasça e eu já passei
dessa idade há um tempo. Não sei se a informação procede, mas me agarro a ela
como uma tábua da salvação. Tenho pânico de dentista.
Mas, enfim.
Imagine que, um dia, a
sociedade decida que pessoas que já extraíram o siso são melhores que as
outras, afinal, a experiência de extrair o tão famigerado dente é enobrecedora.
A partir de então, pessoas que não passaram por isso são consideradas
inferiores. Com o passar do tempo, essa divisão fica cada vez mais gritante. O segundo
grupo passa a não ter voz nas discussões, porque não sabem como é tirar o siso.
Passam a ser vistos como fracos, incapazes e, um belo dia, alguém percebe que
eles não são exatamente seres humanos completos. Se são inferiores, suas vidas
valem menos e, daí para o primeiro assassinato é um pulo. Os jornais especulam
se aquela pessoa morreu porque não tinha o siso, mas logo todos desacreditam. Imagina,
matar alguém só por não ter determinado dente.
Só por serem diferente
dos demais.
Claro, ninguém sofre
preconceito por ter ou não o dente do siso, mas essa historinha não é assim tão
fictícia. Há alguns anos, e nem são tantos assim, pessoas morreram e foram
escravizadas porque tinham uma cor de pele diferente e cultuavam deuses
diferentes. Estranho, não é? Mas mais estranho ainda é que essa bobagem
continua acontecendo até hoje.
Quem tem medo do diferente
A sisofobia não existe
(eu acho), mas nós temos várias outras fobias bem famosas no momento e eu tenho
certeza de que você já ouviu falar de algumas delas. Mas, antes de aprofundar
no assunto, vamos esclarecer o que é fobia. Segundo o dicionário, fobia é um
substantivo feminino que significa “sentimento exagerado de medo ou aversão a
algo. Psicopatologia. Sensação patológica de angústia intensa e persistente,
caracterizada pela aversão ou evitamento de certos objetos, circunstâncias,
sentimentos etc”. Ficou claro, né? Seguindo em frente.
Você já ouviu falar de
transfobia? É a aversão irracional a indivíduos transexuais ou travestis, ou
seja, que nasceram em um determinado sexo, mas que se sentem pertencentes ao
sexo oposto e expressam-se socialmente dessa maneira (existe uma definição muito
mais correta e complexa do que essa, mas eu precisaria de um texto inteiro só pra
isso então vamos trabalhar com essa definição simples). O problema é que, na
nossa sociedade, convencionou-se dividir os seres humanos em dois gêneros que
são definidos pela genitália com que o pobre bebezinho nasce. Se tem um pênis,
é um homem e espera-se que goste de azul, seja forte e viril, agressivo e
territorial. Se tem uma vagina, é uma mulher e espera-se que goste de rosa,
brinque de bonecas, seja meiga, gentil e delicada e cuide da casa e dos filhos
enquanto o macho provedor traz o sustento para casa.
Acontece que tudo isso
é bobagem, convenções sociais. Ou, melhor dizendo, papéis sociais, como explica Juliana Anacleto dos Santos nesse artigo
maravilhoso.
“Neste contexto o conceito de gênero é construído como categoria social que interfere no cotidiano das pessoas. Antes mesmo de nascer já são criadas expectativas para o novo indivíduo. A primeira pergunta a nova alma anunciada é: “É menino ou menina?” Da cor do quarto a escolha profissional, as oportunidades de vida já são construídas pela família que o espera. Sua suposta fragilidade ou virilidade já está construída no imaginário social familiar e será levado consigo por toda vida, tendo peso imponderável em suas escolhas pessoais. Mais do que uma identidade apreendida, o gênero desta nova alma estará imerso nas complexas teias das relações sociais, políticas, econômicas e psicológicas entre homens e mulheres; relações estas que fazem parte da estrutura social institucionalizada da sociedade”.
Trocando em miúdos, os “comportamentos
naturais” das pessoas não tem nada de naturais. São caixinhas que a sociedade
cria arbitrariamente pra categorizar as pessoas. É só reparar como os valores
sociais mudam de época pra época, ou de local pra local. De qualquer maneira, a
sociedade convencionou chamar isso de normal e, qualquer um que transgrida essa
regra, está automaticamente excluído. Vira aquela pessoa que nunca extraiu o
siso.
Ao não se encaixar no
normal, essas pessoas estão abaixo dos outros cidadãos de bem. Daí pra
violência, meu amor, é uma piscadela. Segundo dados do GGB (Grupo Gay da Bahia)
e da Redtrans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil), de janeiro a novembro
de 2012 pelo menos 290 homossexuais e 130 travestis ou transexuais foram assassinadxs.
A média nacional é de duas mortes a cada cinco dias, o que coloca o Brasil no
topo do ranking de mortes por homo ou transfobia, concentrando 44% dos
assassinatos do mundo com essa motivação.
A vítima mais recente
em Dourados, Mato Grosso do Sul, foi Marcelly Tavares. Além de transexual ela
era também garota de programa, ou seja, poucas pessoas estavam tão à margem da
sociedade como ela. As reações ao crime não variaram do padrão, “estava
pedindo, pelo estilo de vida que levava”, “essa gente se envolve com quem não
presta mesmo” e coisas do tipo. Não sou psicólogo ou antropólogo (apesar de ter
muita vontade de ser ambos), sou (quase) jornalista, então vamos nos ater ao aspecto
principal desse blog. A análise do jornalismo.
A travesti ou o travesti
Quando recebi a ligação
me informando de que Marcelly havia falecido, além do baque de saber que uma
pessoa que você conhece foi morta, me veio um gostinho de indignação. Na hora
fui conferir a notícia no site X e, qual não foi minha surpresa (não foi mesmo,
já era de se esperar), me deparo com o título “Travesti é encontrado morto dentro
do próprio carro”. Infelizmente, esqueci completamente de fazer um print. Prometo
que não cometo esse erro novamente, mas ainda é possível ver o título original
no link da matéria. O site Y e o site Z eram ainda mais agressivos em seus respectivos
textos e provavelmente todo o restante do alfabeto de jornalismo online que eu
não tive acesso foi ainda pior. Mas não se trata aqui de julgar o comportamento
deste ou daquele veículo, e sim a postura do jornalismo como um todo. Até porque,
quando corrigidos, os três sites em questão revisaram suas matérias. Estrelinhas
douradas pra eles.
Ao leitor que não está
familiarizado com o backstage do jornalismo, esclareço: o jornalista não sabe
nada. Verdade, ele é um canal através do qual o especialista ou personagem
envolvido naquele assunto se manifesta, ele só conta a história. Claro,
jornalistas sabem um pouco de tudo, mas o segredo é que o profissional não tem
a obrigação de dominar determinado
assunto, porque aquilo não é o campo dele. Se um jornalista precisa escrever
sobre o Bóson de Higgs, ele vai pesquisar sobre o assunto e conversar com quem
realmente entende daquilo. Não cabe ao jornalista alterar o que a fonte disse
porque, a princípio, foi ela quem estudou física quântica por não sei quantos
anos. Justamente por isso procura-se a fonte mais entendida possível do
assunto, para que ela fale com segurança.
Mas ao se tratar de
expressões de gênero que fogem do convencional, é batata. Lá vai estar aquele
título enorme tratando a travesti ou transexual no masculino, usando ambas como
sinônimos e, enfim, cometendo todo o tipo de agressão possível. Porque sim, é
possível agredir alguém com palavras e não é só mandando a pessoa tomar naquele
lugar, mas é um assunto que eu quero abordar em outro texto.
Gregório Falcão e Clarice Duvivier |
Nesses casos, o
jornalista se esquece completamente dos quatro anos de faculdade e age como se
ele soubesse mais do assunto do que a pessoa envolvida. Na sexta-feira em
questão, no meio de uma discussão no Facebook, recebi um link do Uol Vestibular
ensinando a usar a flexão de gênero certa com a palavra travesti. Ignorando o
fato de que o texto era extremamente transfóbico, ele me fez pensar. Com que,
então, regras de português são tudo o que a gente precisa para viver em
sociedade! Digamos que eu vá produzir uma matéria sobre a vida das garotas de
programa. Posso chamá-las de putas no meu texto à vontade, já que, semanticamente,
eu estou correto. Não importa que aquilo seja agressivo sociologicamente, o
português diz que eu estou certo.
Um segundo aspecto que
me chamou a atenção no episódio foi que uma colega jornalista me passou o link
desse documento produzido pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais
do Brasil), uma circular excelente e simples que explica como tratar pessoas
trans* em matérias e enfatiza a importância disso. Mas os veículos escolhem
ignorar o documento, porque né, gente, não é tão importante e se a gente for
tratar com respeito esse bando de pervertidos vai virar bagunça (alerta de sarcasmo
aqui).
As pessoas devem cansar
de me ouvir falando que jornalismo é formador de opinião, mas é mesmo. É um
valor que foi agregado à profissão há centenas de anos, o que o jornalista fala
é verdade e pronto. Quando um veículo insiste em tratar uma mulher trans ou uma
travesti no masculino, está ignorando sua identidade e reafirmando que aquele
indivíduo é um homem anormal, pois tenta se encaixar em uma caixinha que não
foi feita pra ele. O mesmo ao tratar um homem trans como uma mulher, como o que
aconteceu com o cara que tentou invadir o Palácio do Planalto para se declarar
para a Presidente. Ao enfatizar a identidade de gênero de uma pessoa nas
notícias policiais, ressalta que aquela pessoa foi vítima ou perpetrou um crime
por conta de sua identidade. Ou vai me dizer que você viu, nesse último século,
alguma notícia policial que enfatizasse que o ladrão era negro ou favelado e,
claro, por isso mesmo, era bandido?
Mais de uma vez amigos
já me apontaram pessoas na rua e perguntaram “você acha que é homem ou mulher?”.
Ignorando que a pergunta é extremamente ofensiva, eu sempre respondo “ora, como
eu vou saber, não perguntei pra pessoa”. E é isso, simplesmente. Não se pode
assumir que uma pessoa pertence a um determinado gênero só porque ah, sei lá,
parece que ela é assim ou assado.
É como um jornalista
que chega atrasado a uma coletiva. Eu adoro analogias, vocês vão perceber. Ele chega
e, com vergonha de perguntar aos colegas quem é o sujeito de terno e gravata
respondendo as perguntas, só observa. O sujeito fala de suas recentes conquistas
profissionais, da dificuldade de se estabelecer no mercado e de como ele
aprendeu com o pai a ser o profissional que é hoje. De volta à redação, nosso tímido
repórter redige um belo texto falando sobre o jovem empresário em ascensão. No dia
seguinte, descobre que o sujeito era, na verdade, um skatista profissional
ganhador do último torneio de Extreme Sports ou algo do tipo. Questionado pelo
editor, ele responde “ele estava lá, de terno e gravata, falando sobre
empreendimentos familiares, eu assumi que ele era um empresário, se fosse
skatista tinha que falar com gírias e usar bermuda cargo”.
Ai não dá, né?
- Este texto é dedicado à Marcelly e à Satine, duas mulheres maravilhosas que eu tive a honra de conhecer, mesmo que não à fundo. Ambas vítimas, cada qual à sua maneira, da nossa sociedade excludente. Espero que, onde quer que elas estejam, sintam-se amadas.
só hj vi esse excelente texto e adorei o elogio ao artigo. saudações! Juliana Anacleto
ResponderExcluirEu é que agradeço o elogio e a atenção, Juliana! Forte abraço.
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