Nessa semana minha
crença na melhoria da humanidade foi testada mais uma vez. Eis que, ao abrir a
Época numa chuvosa manhã de segunda-feira, me deparo com um dos comentários
mais absurdos que eu já vi publicados em uma revista. Explico.
Na semana passada, a
jornalista Karin Hueck publicou uma excelente reportagem sobre a pesquisa “Ascoisas que a gente ouve”, realizada por ela mesma informalmente na internet,
sobre “cantadas” empurradas goela abaixo das mulheres nas ruas. O resultado
revelador (alerta de sarcasmo aqui) foi que 99,6% das quase 8 mil mulheres
entrevistadas não achava aquilo nem um
pouco galante, seja lá o que isso
for. São 8 mil mulheres constantemente agredidas nas ruas, em espaços públicos,
oprimidas e forçadas a andar sempre com a cabeça baixa, temendo todo e qualquer
sujeito que venha na direção contrária.
Caso você ainda não
tenha percebido, não, isso não é normal.
Os supostos elogios,
que vão de “linda” até “te chupava todinha”, fazem parte da realidade não só
dessas 8 mil mulheres, mas de toda mulher que comete o crime inafiançável de
sair à rua e viver sua vida. O que me leva de volta ao eloquente comentário
publicado na edição seguinte à da publicação da pesquisa.
Na seção de Cartas do
Leitor, quatro pessoas davam suas opiniões. Surpreendentemente (só que não), a
única contrária ao texto era a de um homem. Olha só. Dos quatro, o único que
não faz ideia do que o texto está falando. E isso me envergonha deveras. Fazer parte
do mesmo grupo social desse sujeito (apesar de eu não ter sido criado como
homem, o que pensando bem foi um privilégio), é deprimente.
A maravilhosa contribuição
do rapaz foi a seguinte: quer ser respeitada, vista-se decentemente e se dê ao
respeito. Não foram essas as palavras exatas, porque não tenho a revista em
mãos, mas a mensagem era basicamente essa. Não é exagero meu, é só pegar a
revista e conferir. É a edição com a reportagem dos imóveis mais caros do país na
capa. Vá lá, teste você também sua fé na humanidade.
Isso acontece por conta
de uma coisinha incrível chamada cultura do estupro. Eu poderia usar mil
parágrafos para falar sobre ela, mas vou deixar a sucinta e ótima definição de
Cynthia Semíramis, no texto “Sobre a cultura do estupro”.
Nessa estrutura, a forma utilizada para constranger mulheres a se submeter aos homens está no controle do corpo e de sua sexualidade: deveriam ser virgens ou sexualmente recatadas, não deveriam usar determinadas roupas ou frequentar certos locais. E a punição para as que não aceitassem era a legitimação da violência por meio de hostilidade e, em casos extremos, estupro e morte. Ou seja, a cultura do estupro é o processo de constrangimento social que garante a manutenção dos papéis de gênero. Não é uma ação individual (como se todo homem odiasse mulheres), mas uma convenção social que mantém determinados papéis e estruturas sociais.
Homens encaram o corpo
de uma mulher como espaço público, por isso sentem-se no direito de controla-lo,
tocá-lo, tecer comentários sobre ele e usá-lo da forma como lhes convém. É daí
que surgem agressões de todos os níveis, desde o “gostosa” sussurrado na rua
até o estupro clássico, aquele cometido com violência (e que não é, nem de
longe, a única forma ou o jeito “certo” de acontecer um estupro).
É por isso que, na
pesquisa de Hueck, 85% das mulheres afirmaram que alguém já lhes “passou a mão”
(88% nas nádegas; 56% na cintura; 20% nos seios; 17% entre as pernas; e 5% em
outras partes). E, olha só, várias dessas mulheres não são nem mulheres ainda. São
crianças ou adolescentes. E a gente acha isso normal.
O problema é que não
existe uma campanha real de conscientização a respeito disso. As pessoas seguem
achando que “sempre foi assim”, que a roupa de uma mulher é o suficiente para
definir quem ela é e como merece ser tratada, que no fundo mulher adora passar
na frente de uma construção e ouvir absurdos, que isso faz bem pro ego.
Só que não faz. E não
sou eu que estou dizendo, o que diabos eu sei sobre o assunto.
São 8 mil mulheres,
cansadas de não poder ir do ponto A ao ponto B sem ouvir um “ô lá em casa” a
cada esquina. São 8 mil mulheres que só querem viver as suas vidas, do jeito
que homens levam as deles. Sem gente achando que pode invadir seu espaço
pessoal.
São 8 mil mulheres que
só querem ser tratadas feito gente.
- As excelentes ilustrações do post são de autoria da designer Gabriela Shigihara e falam por si só. Ela também contribui para o site ThinkOlga, onde a pesquisa foi originalmente publicada, e que com certeza vale uma visita.
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