terça-feira, 19 de novembro de 2013
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Estupra, mas não mata

11:41
Paulo Maluf é um sujeito cheio de características incríveis, praticamente um personagem do folclore nacional. E dentre suas incontáveis pérolas, tanto em discursos quanto em comportamentos, está o inesquecível “estupra, mas não mata”, proferido em 1992, durante sua campanha pela prefeitura da cidade de São Paulo.

Obviamente a frase repercutiu mal na época, o que obrigou Maluf a se retratar. A emenda ficou pior do que o soneto e até hoje sua frase é lembrada como absurda, pra dizer o mínimo.

Eis que, esse mês, sai a 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e prova que o absurdo proferido por Maluf não poderia ser mais atual. No Anuário, informações referentes a 2012 que assustam bastante. Só em 2012, 50.617 casos de estupro foram registrados no país. Atenção, registrados. Como é de conhecimento público, o estupro é o crime em que a vítima é mais atacada e questionada pelo público e pela polícia, o que desencoraja muitas mulheres de prestar queixas. Isso significa que, todos os dias, mais de 130 mulheres vão a polícia para relatar o crime que sofreram.

O número assusta mais se comparado a estatística de homicídios dolosos, aquele sem intenção de matar. Foram “apenas” 47.136 no ano passado. Fica claro, então, que muita gente está seguindo o sábio conselho do Maluf.

Esse Anuário nada mais é do que um punhado de números, dados frios. É preciso dar um rosto pra esse problema de epidemia que é a cultura do estupro, é preciso que as pessoas se conscientizem cada vez mais que o problema vai muito além da vítima sozinha no beco escuro, atacada pelo maníaco estranho. Esse tipo de estupro corresponde a apenas 27% da realidade, segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, contra os 73% dos estupros cometidos por conhecidos da vítima, a maioria das vezes dentro da própria casa. Como muito bem definido por Rosiska Darcy de Oliveira, em seu artigo “A Guerra Contra as Mulheres”.

Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.
Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.

E a mídia, por sua vez, precisa desesperadamente fazer a sua parte. Cerca de 150 veículos repercutiram essa notícia, quando ela foi divulgada, e mesmo assim nem a Secretaria de Direitos Humanos, nem a Secretaria de Políticas para as Mulheres, se manifestaram. É papel dos meios de comunicação, então, cobrar uma postura das autoridades. Fiscalizar, exigir, como fazem em tantas outras esferas sociais.

Um dos dados divulgados pelo estudo foi que, de 2011 para 2012, houve um aumento de mais de 18% nos casos registrados. Isso pode significar duas coisas: primeiro, os números de estupros não foram afetados, mas mais vítimas se sentem encorajadas a denunciar, o que aumenta o número de casos registrados. Isso não seria uma coisa completamente ruim e já aconteceu na Suécia, por exemplo.

Segundo, e mais provável, o número de estupros realmente aumentou e fala-se sobre o assunto mais abertamente não só para conscientizar a população, mas também para criar uma cultura do medo, onde as mulheres são previamente avisadas de que as ruas não são lugares seguros e, por isso, devem cuidar como andam, como se vestem e com quem andam, a não ser que queiram sofrer as consequências.


O estupro é, afinal, uma questão de poder, não de sexo. Nunca se trata de um sujeito “com tanto tesão que não consegue se controlar”. Se trata de um homem que quer mostrar quem é que manda, quem obedece e como as coisas funcionam. Uma vez que isso fique claro, é preciso partir para a próxima etapa do problema: entender que estupradores não são dragões de três cabeças, mas pessoas “normais”, como o seu vizinho, o seu chefe, o seu colega de mesa de bar e até mesmo você. Quando ficar claro que o estupro pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer um, ai sim estaremos no caminho para modificar essas estatísticas.
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