Paulo Maluf é um
sujeito cheio de características incríveis, praticamente um personagem do
folclore nacional. E dentre suas incontáveis pérolas, tanto em discursos quanto
em comportamentos, está o inesquecível “estupra, mas não mata”, proferido em 1992,
durante sua campanha pela prefeitura da cidade de São Paulo.
Obviamente a frase
repercutiu mal na época, o que obrigou Maluf a se retratar. A emenda ficou pior
do que o soneto e até hoje sua frase é lembrada como absurda, pra dizer o
mínimo.
Eis que, esse mês, sai
a 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e prova que o absurdo
proferido por Maluf não poderia ser mais atual. No Anuário, informações
referentes a 2012 que assustam bastante. Só em 2012, 50.617 casos de estupro
foram registrados no país. Atenção, registrados.
Como é de conhecimento público, o estupro é o crime em que a vítima é mais
atacada e questionada pelo público e pela polícia, o que desencoraja muitas
mulheres de prestar queixas. Isso significa que, todos os dias, mais de 130
mulheres vão a polícia para relatar o crime que sofreram.
O número assusta mais
se comparado a estatística de homicídios dolosos, aquele sem intenção de matar.
Foram “apenas” 47.136 no ano passado. Fica claro, então, que muita gente está seguindo
o sábio conselho do Maluf.
Esse Anuário nada mais
é do que um punhado de números, dados frios. É preciso dar um rosto pra esse
problema de epidemia que é a cultura do estupro, é preciso que as pessoas se
conscientizem cada vez mais que o problema vai muito além da vítima sozinha no
beco escuro, atacada pelo maníaco estranho. Esse tipo de estupro corresponde a
apenas 27% da realidade, segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, contra os 73% dos estupros cometidos por conhecidos da
vítima, a maioria das vezes dentro da própria casa. Como muito bem definido por
Rosiska Darcy de Oliveira, em seu artigo “A Guerra Contra as Mulheres”.
Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.
Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.
E a mídia, por sua vez,
precisa desesperadamente fazer a sua parte. Cerca de 150 veículos repercutiram
essa notícia, quando ela foi divulgada, e mesmo assim nem a Secretaria de
Direitos Humanos, nem a Secretaria de Políticas para as Mulheres, se
manifestaram. É papel dos meios de comunicação, então, cobrar uma postura das
autoridades. Fiscalizar, exigir, como fazem em tantas outras esferas sociais.
Um dos dados divulgados
pelo estudo foi que, de 2011 para 2012, houve um aumento de mais de 18% nos
casos registrados. Isso pode significar duas coisas: primeiro, os números de
estupros não foram afetados, mas mais vítimas se sentem encorajadas a
denunciar, o que aumenta o número de casos registrados. Isso não seria uma
coisa completamente ruim e já aconteceu na Suécia, por exemplo.
Segundo, e mais
provável, o número de estupros realmente aumentou e fala-se sobre o assunto mais
abertamente não só para conscientizar a população, mas também para criar uma
cultura do medo, onde as mulheres são previamente avisadas de que as ruas não
são lugares seguros e, por isso, devem cuidar como andam, como se vestem e com
quem andam, a não ser que queiram sofrer as consequências.
O estupro é, afinal,
uma questão de poder, não de sexo. Nunca se trata de um sujeito “com tanto
tesão que não consegue se controlar”. Se trata de um homem que quer mostrar
quem é que manda, quem obedece e como as coisas funcionam. Uma vez que isso
fique claro, é preciso partir para a próxima etapa do problema: entender que
estupradores não são dragões de três cabeças, mas pessoas “normais”, como o seu
vizinho, o seu chefe, o seu colega de mesa de bar e até mesmo você. Quando ficar
claro que o estupro pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer um, ai sim
estaremos no caminho para modificar essas estatísticas.
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